Tudo se passou em breves segundos, mas foram instantes suficientes para mudar uma vida. Imaginemos uma pedra de cinco quilos a partir o para-brisas do carro, um pedregulho que saltou à passagem de um camião à sua frente e o atingiu, depois, em cheio na cabeça. Há um enorme aparato, embora nunca ninguém tivesse tirado a limpo o que fazia aquele paralelepípedo cinzento no meio da autoestrada.
Sabe-se, apenas, que o condutor se despistou, já sem sentidos, e passou dois meses em coma, a lutar pela vida, num hospital.
Apesar da brutalidade da pancada, que lhe provocou afundamento do cérebro, com perda de massa encefálica, não morreu porque, diz ele, queria viver.
"Já foi há 14 anos, mas lembro-me como se fosse ontem." Miguel Vilar, então com 40 anos, entrou na A5, a caminho de Cascais, e nem percebeu bem o que lhe aconteceu.
"Foi no dia 28 de janeiro de 1997 e ia para casa. Eram 11 da manhã." A recordação ainda está tão presente que impressiona.
Piloto português pioneiro nas competições automobilísticas, a tentar uma carreira em campeonatos internacionais de monolugares, em fins da década de 1980, dois meses após ter saído de coma, Miguel passou a empreender uma corrida pela vida. Pouco depois do acidente, o irmão Duarte descobriu, numa revista, o trabalho do neurocientista português António Damásio, conceituado especialis ta mundial em estudos do cérebro. Para Miguel, parecia ser a única saída. E correu para o telefone.
"Na altura", conta, "ele [Damásio] ainda estava no Iowa. Fui atendido por um assistente que me disse: 'Mande uma carta.' Ainda hoje é meu amigo, o Neil." Em breve, acompanhado da então sua mulher, estava em frente de Damásio. "Disse-me que o tratamento custava perto de 6 mil contos", relata. "Depois, apareceu com um papel para eu assinar. Basicamente, servia para autorizar tudo o que se fizesse em mim, para um estudo em benefício da Humanidade. Tornou-me num case study." Ou seja: ficou quase sem encargos, já que o laboratório da Universidade do Iowa custeou grande parte das viagens. Foi o primeiro passo para que um caso considerado perdido se transformasse num exemplo de sucesso. Submeteu-se a uma bateria de testes e a mais de 40 operações, com muitos ferros, hoje guardados numa gaveta, em sua casa, tal como o pedregulho cinzento que lhe mudou a vida.
Ainda assim, até voltar a sentar-se ao vo lante de um carro, passaram oito anos. Estávamos em 2005, quando organizou essa primeira corrida, um assumido tributo a quem o ajudou a levantar-se do chão. No Autódromo do Estoril, sentiu, de novo, o estremecer de um motor, no caso, de um Honda encarnado, decorado, entre outros, com os nomes de António e da sua mulher, a igualmente cientista Hanna Damásio. No pódio, foi-lhe entregue a Taça Coragem.
O TRIUNFO DA TEIMOSIA
Agora, quer render nova homenagem ao neurocientista, atravessando de bicicleta os EUA, da costa Este à Oeste, com partida no próximo dia 17. Objetivo: ao cabo de 42 dias e de 4 008 km percorridos (ver infografia), chegar a Los Angeles a tempo de celebrar os seus 55 anos, num jantar com o casal Damásio. Segundo o médico, o aniversariante é um sobrevivente. Miguel Vilar responde que aprendeu a transformar obstáculos em desafios.
A paixão pelos carros cresceu-lhe desde que viu o filme Grand Prix, com James Garner e Yves Montand. Em 1988, saltou as fronteiras disputou campeonatos da então Fórmula Opel, ao lado de nomes que ficariam inscritos a ouro na história dos pilotos, do inglês Damon Hill ao finlandês Mika Hakkinen. Miguel diz que não chegou onde gostaria. "Se calhar, também não tinha o talento com que sonhava." Mas ninguém lhe tira o pioneirismo desportivo nem a ousadia de, como empresário, cedo se ter lançado na comercialização, em Portugal, de barcos de recreio de luxo e de bicicletas topo de gama.
Casado, com três filhos, acostumado ao sucesso assim era, até àquele dia de 1997. Depois, a família desmoronou-se e as suas duas empresas foram à falência, no meio de um processo kafkiano com a Brisa, que veio a ser absolvida de qualquer responsabilidade em tribunal. De um dia para o outro, viu-se obrigado a refazer tudo.
Após o acidente, a indemnização demoraria oito anos a chegar: um tribunal determinara que o Instituto de Seguros de Portugal (ISP), através do Fundo de Garantia Automóvel, o compensasse pelos danos sofridos. Mas o ISP recorreu. As dívidas acumulavam-se. Tentou o suicídio por duas vezes. Até que o Supremo Tribunal de Justiça confirmou aquela sentença. "Não desistam nunca", insiste Miguel Vilar. "Os meus amigos dizem que só o consegui porque sou teimoso e não gosto de perder. Na prática, o meu pior defeito tornou-se na minha salvação."
CORRIDA INTERMINÁVEL
No dia de 2005 em que se sentou, de novo, num carro de competição, Miguel Vilar recorda-se de lhe perguntarem se aquela prova também era para vencer. "Já ganhei ", respondeu. Para ele, o importante sempre foi recuperar e não se deixar consumir pela sina. "A minha corrida era outra." Aos poucos, retomou a vida normal.
"Nunca parei!" e até voltou a estudar, ao inscrever-se, há dois anos, em Ciência Política e Relações Internacionais, na Lusófona.
Damásio dixit: estamos perante um "verdadeiro tributo à força de vontade".
É esta mensagem positiva que impulsiona Miguel no desafio de cruzar os EUA de bicicleta. Há meses que se prepara é vê-lo em treinos, todos os dias, em Cascais. Chega a percorrer 80 km de uma vez. Durante mês e meio, essa deverá ser a média diária.
Vai sozinho mas seguro: "Posso dizer que comecei a correr aos 17 anos e ainda não acabei." Como falamos da América, apetece proclamar: "Yes, he can!"
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